Adivinha quem vem para gravar?
Apesar de todo o apelo “trendy” de colaborações entre músicos pela internet, com bandas largas pulsantes e interações entre talentos musicais tão diversos quanto imprevisíveis, poucas coisas podem ser tão divertidas quanto uma gravação com músicos ao vivo, juntos, criando ao mesmo tempo e falando bobagens diversas nos intervalos.
Recentemente, tive o prazer de ser convidado para gravar três faixas no CD de um cantor com um clássico quarteto de base. Ficamos todos muito impressionados em reviver o prazer de tocar simultaneamente teclado/guitarra/baixo/bateria com o cantor fazendo voz guia em um bom estúdio, com equipamento adequado e técnico profissional.
Não se iluda, leitor: a gravação conta-gotas, que é tão usada hoje em dia, começou a tomar força em algum ponto do final dos anos 90 por várias razões. As gravadoras compravam pacotes de horas de grandes estúdios por um preço compensador para ambas as partes. Assim sendo, no orçamento do artista, gastar horas de estúdio experimentando com as novas tecnologias que apareciam passou, então, a ser um costume. Também começou a se difundir certa improdutividade na maneira de gravar mais “criação coletiva”, sendo abolida, ou evitada, a figura do arranjador, alguém que pensa com o artista, onde ele quer fazer a música chegar, e com que instrumentação isso será feito.
Popularizou-se o costume da edição quase doentia em busca da perfeição técnica. Essa, apenas “uma meta defendida pelo goleiro”, como já nos disse Gil há tantas canções atrás, engessou muitas tentativas musicais bem intencionadas na concepção, mas confusas no resultado final.
Na virada do milênio, ao mesmo tempo em que a gravação digital não linear se estabeleceu, os orçamentos minguantes, os impulsos egóticos e a sensação de controle absoluto, desejada por alguns produtores com seu mote infalível “depois a gente edita”, foi inibindo progressivamente a ação coletiva, que sempre foi uma das maiores forças motrizes da criatividade musical.
Diferentemente de escrever um livro, ou pintar um quadro, em que o protagonista tem que ficar em paz e sozinho para produzir adequadamente, a música evidentemente se enriquece na interação entre os músicos na construção da obra. Atualmente, no mercado profissional da música, os orçamentos que permitem a presença simultânea de músicos em um estúdio profissional são cada vez mais raros, mas convidar um músico para vir gravar em seu home estúdio pode ser divertido e extremamente produtivo para a música, se você, como produtor, se organizar para aproveitar ao máximo essa situação.
Para começar, dimensione a quantidade de trabalho que você pretende fazer em relação ao pagamento que seu orçamento permite e combine isso com o amigo. Tudo que é combinado antes costuma não dar problema depois, mas o tradicional “tudo bem, vamos nessa” pode ser uma fonte de mágoas e insatisfações que vão refletir no que você está gravando, leitor!
Calcule o tempo do que vai fazer pelo músico que você está chamando: independentemente da qualidade profissional do seu convidado, há caras mais dispersos que falam muito entre um take e outro, sujeitos que demoram mais a entrar no clima do trabalho, cidadãos nervosos que querem matar tudo no primeiro take e muitas variações pelo caminho. Ao fazer o convite avise: “serão duas bases de guitarra e um solo de violão em outra música, pensei em quatro horas de trabalho, o que você acha”?
Não faça o seu convidado perder tempo e energia depois de ter carregado instrumentos, pedaleiras, estojos e estantes para seu estúdio nesse calor infernal, ou depois de uma árdua batalha por um táxi, ou para estacionar o carro. Dimensione os eventos da gravação sempre do maior (ou mais complicado) para o menor e, dependendo da situação, comece com uma tarefa que você tem absoluta certeza de que o convidado vai arrasar para que ele tome confiança. Em hipótese alguma, deixe o mais trabalhoso para o final, quando o cansaço já estará minando a sua concentração e a de seu colega.
Se possível, espere o convidado com tudo pronto para ele plugar seu instrumento, ou se colocar diante do microfone e atacar. Aquele cabo que dá ruído, um sinal que não chega, ou o fone desequilibrado para quem vai gravar são os piores inimigos da produtividade. Como sabemos que músicos gostam de falar, poderão ser propagadores de uma má impressão de seu estúdio que você cuida com tanto orgulho e carinho.
Prepare partes se o seu convidado é de leitura, ou tenha bem claro em mente o que você quer dele: feeling, ou respeito ao “papel”? O fato de você não estar pagando a hora de estúdio não pode ser desculpa para alugar seu amigo, porque você não o está pagando por hora também. Finalmente, preveja um break e compre umas coisinhas na padaria da esquina para um lanche caprichado, no qual as fofocas do mundo musical ficarão em dia e os velhos casos serão relembrados. No fundo mesmo, esse foi o maior motivador do convite que fez ao amigo para gravar em seu estúdio.
Fernando Moura é pianista, compositor, arranjador e produtor de música e trilhas sonoras com mais de 30 anos de experiência no mercado. Saiba mais em www.myspace.com/fernandomoura.
Cara, sou super fã da sua coluna, aqui e na AMT. Esta aqui vc matou a pau e falou exatamente o que eu penso sobre gravações a conta gotas. Definitivamente, o melhor é pré produzir e ir todo mundo junto pro estúdio gravar ao vivo (de preferência sem metrônomo) pra não ter que editar nada depois. Devia ser o melhor tempo do mundo quando não existia click track, rs!
Também escrevo sobre áudio, dá uma olhada: http://coletivopegada.org/category/audio-de-pegada/
abs!
Gravar ao vivo é muito bom mesmo. Eu já tive esse prazer e realmente está ficando cada vez mais raro. Mas no mundo de hoje, a galera tem preguiça até de ensaiar! Aí realmente não tem como fazer muita coisa a não ser editar até o mouse quebrar!
Um abraço Fernandão!